Denise Diáspora: "Publicado por Revista Babel em 17 de outubro de 2012 em Sociedade • Robson Fernando de Souza, no blog Consciência*."
Uma história em que pobreza, padrão eurocêntrico de beleza e cultura
racista se chocam vem movimentando a internet. Um mendigo fotografado em
Curitiba está sendo assunto em todo o Brasil, por ser um branco de
olhos azuis “mas” ter sido castigado pela pobreza mendicante. Quando
sabemos dessa novidade e a comparamos com a vida de milhares de outros
mendigos pelo Brasil, percebemos o quanto a cultura brasileira ainda é
muito impregnada de racismo. O mendigo branco, cujo nome ainda não
foi revelado, vive nas ruas de Curitiba e posou para a foto desejando
“ser colocado no rádio” para ficar famoso. A fotografia foi posta no
Facebook e agora campeia pelo Brasil inteiro, chamando atenção de
mulheres e homens. Ora é considerado “lindo de morrer”, com muitas
mulheres querendo namorá-lo e abrigá-lo encantadas com a beleza dele;
ora vem sendo candidato às passarelas da moda, como o modelo “dos
sonhos” das grifes; ora tem sua mendicância posta em dúvida
principalmente por ser um branco de olhos azuis, parecido demais com um
europeu para ter sua pobreza reconhecida. As opiniões convergem em sua
maioria a um ponto: ele é “lindo” demais para continuar mendigo. E
enquanto isso, no mesmo Brasil, inclusive na mesma Curitiba, milhares de
negros e pardos padecem de miséria igual ou pior, mas por sua vez
permanecem tratados como rejeitos da sociedade, como seres dignos de
nada mais do que pena ou virada de rostos. Muitos ainda clamam pela
mídia, por um pouco de atenção e humanitarismo, e tudo o que conseguem
são poucos minutos na TV ou no rádio, algumas doações e, com sorte, uma
assistência de alguma ONG de assistência social ou do órgão oficial de
serviço social da prefeitura. Mas praticamente nunca são abraçados
pelo padrão cultural de beleza dominante no país, tornados celebridades
instantâneas em função de sua aparência física e alçados a modelos
“sarados” e adorados. É aí que começamos a pensar: se fosse um negro
de fortes traços africanos ou um mulato, seria prontamente rejeitado em
sua demanda de “ser colocado no rádio” ou receber ajuda humanitária,
empregatícia e/ou habitacional de algum político ou empresa. Não
chamaria a atenção de virtualmente ninguém na internet fora algumas
meias-dúzias de moças ou rapazes que gostam da beleza negra. Seria
apenas mais um entre milhares de mendigos que vagam pelos centros das
cidades do Brasil, sua foto seria com desdém pela sociedade, e ele
voltaria, logo após a fotografia, às ruas para ali viver por tempo
indeterminado, senão para sempre. Em outras palavras, para nossa
sociedade, não é normal ver em mendicância e miséria um branco de
aparência europeia. Para ela, brancos merecem muito mais do que isso.
Mas, por outro lado, negros nas ruas pedindo esmolas e implorando por
dignidade é considerado algo mais que normal. É tradição já. Por que
eles merecem ser alçados a modelos a serviço da alta costura? Que se
virem, vão trabalhar, procurar um emprego, correr atrás da escola aonde
não foram na infância – assim pensa grande parte da sociedade que está
agora se compadecendo com o pedinte eurodescendente. Observando a
história e seu contexto, percebemos que a grande sorte do mendigo ainda
anônimo foi ser branco de olhos azuis, ter um forte fenótipo
eurodescendente – e talvez ser até mesmo um imigrante europeu
desabrigado. Sua beleza caiu nas graças do povo, seu nome será revelado a
qualquer momento, e agora ele está tendo seu momento de fama e poderá
virar um modelo a encantar as grifes e as pessoas que apreciam a beleza
masculina. Se fosse negro, sendo ou não um imigrante, seria
considerado “feio”, rebaixado a apenas “mais um” e continuaria visto
como um mero rejeito a ser tratado como lixo pela sociedade, pelo Estado
e por seu braço violento, a polícia. A verdade é que o sujeito está
prestes a subir na vida não tanto por acaso, talento ou esforço. Mas
sim porque nossa sociedade é racista e eurocêntrica e, ao mesmo tempo
que vira a cara para negros em situação de miséria, compadece de brancos
que estão no mesmo estado. Afinal, ver afrodescendentes pedindo esmola e
padecendo nas ruas é “normal”, mas brancos de olhos azuis considerados
“bonitões”, não. Se os brasileiros parassem de achar normal haver
negros em miséria nas ruas e começassem a apreciar o padrão de beleza
deles, passaríamos a ver as passarelas lotadas de ex-mendigos, fazendo
companhia profissionalmente com o curitibano. Este sequer se tornaria a
celebridade instantânea que se tornou. Mas se isso não acontece – e,
ao invés, a miséria negra é tratada com banalidade –, é porque o
racismo, destacadamente em suas vertentes social e estética, continua
imperando forte e fazendo os brasileiros de todas as cores acharem
brancos melhores que negros apenas por terem pele, cabelo e olhos
claros. *Título original: A sorte do mendigo branco num país que vira a cara para os mendigos negros FONTE: http://www.revistababel.com.br/a-sorte-do-mendigo-branco/